quarta-feira, abril 26, 2006

25 de Abril

A perua estava sentada na esplanada do café. Vestia calças de ganga, estrategicamente esburacadas e camisola de alcinhas provocante, muito curta como dita a moda actual, com o umbigo à vista, a aparecer por entre os montes de banhas, com a pele bem ressequida. Fumava cigarro atrás de cigarro e fazia soar a sua tosse cavernosa, entre cada frase que saía daquela boca recheada de dentes podres e pretos.
--- Antes do 25 de Abril é que era bom ! proclamou a fulana, alto e em bom som, como que se dirigindo para uma plateia, que não estava ali. No tempo do Salazar não havia estas poucas vergonhas, quase gritou antes de ser acometida por mais um ataque de tosse. Havia respeito e não se viam pretos, nem ciganos, nem ucranianos pelas ruas !
--- Pois era, concordou o gordo balofo da mesa do lado, podia-se andar descansado nas ruas e se alguém nos faltasse ao respeito, a Pide tratava-lhe logo do sarampo, concluiu com voz decrépita e uma lágrima de saudade marota a ameaçar descer-lhe pelo rosto bexigoso.
--- E Portugal era um país rico, com tudo o que vinha do Ultramar, acrescentou a perua, acendendo mais um cigarro e cruzando a perna, que nem uma Sharon Stone, da terceira idade. Malandros, tiveram que dar aquilo aos comunistas e aos pretos !
--- Uns pulhas, são o que eles são, uns pulhas, acrescentou o velho, atirando uns bocadinhos do queque ao Bobby de estimação, cachorro inchado, tal como o dono e que ladrava de forma irritante, com rodos os que se aproximassem da mesa.
Nas mesas em volta o silêncio era total. Alguns liam o jornal, outros olhavam em volta, com ar pensativo.
Passado um pouco, uma velhota de cabelos brancos e aspecto modesto, levantou-se de uma das mesas do canto e dirigiu-se até eles. Quando lá chegou olhou para a perua e disse:
--- Antes do 25 de Abril, o lugar da mulher era em casa e não vinha para o café, fumar como uma galdéria. Também não andava para aí a mostrar o umbigo, nem essas carnes penduradas, tentando imitar as jovens de 18 anos.
A perua ficou branca e desfez-se em mais um ataque de tosse, sem conseguir dizer nada,
Em seguida a velhota virou-se para o gordo.
--- Quanto a si, o bolo que está a dar ao seu cão maricas, podia dar uma alegria a alguma criança com fome. O seu castigo é essa barriga monstruosa e esse peso imenso que carrega e carregará até ao fim da sua vida.
Dito isto virou-lhes as costas e seguiu o seu caminho.

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

ah ah ah!!! Boa! Boa! Perderam uma boa oportunidade de estar calados, assim como muita gente que enche o peito e fala á boca cheia de "...antes do 25 de Abril é que era bom..." Bendito 25 de Abril e bendita revolução, ninguem gosta de viver em ditaduras!

28/4/06 18:39  
Anonymous Anónimo said...

Fez ontem à noite 32 anos que a voz de Paulo de Carvalho, difundida pelos Emissores Associados de Lisboa, cantava "E Depois do Adeus" e dava início à Revolução que poria fim ao fascismo. Mais de três décadas volvidas, temos o direito a acusar o cantor e os revoltosos de publicidade enganosa. Não se tratou de um "adeus". Foi apenas um "até já".
As condições de vida voltaram a degradar-se. Um em cada cinco portugueses é pobre. O analfabetismo foi praticamente erradicado, mas veste agora a roupagem da iletracia reinante. Pior: antes do 25 de Abril, o povo preocupava-se com a política, mas não podia exercer direitos cívicos; hoje pode, mas não quer saber.
Trinta e dois anos depois da Revolução, oitenta anos após o começo da ditadura, cumpriu-se o grande sonho do de Santa Comba: o povo preza muito o respeitinho, não quer saber de politiquices, vive na santa ignoranciazinha, apascentado pela trilogia Fado, Futebol e Fátima. Literalmente, excepto o Fado, que hoje tem de ser visto apenas como símbolo da cultura de massas em geral.
Os exemplos da submissão do bom povinho luso são aos pontapés. Aqueles mesmos que são vítimas do desemprego, do aumento dos preços e da estagnação dos salários sem se mobilizarem para repor os direitos são os mesmos que saem à rua aos magotes para comemorar vitórias futebolísticas, para andar de joelhos em volta de um templo qualquer ou para ouvir um qualquer cantor pimba na festarola de Santa Cona de Assobio.
Hoje, 25 de Abril de 2006, presenciei duas cenas elucidativas. Enquanto na Assembleia da República alguns deputados celebravam o 25 de Abril e outros criticavam fortemente os revolucionários e timidamente a ditadura, o televisor do café que escolhi para ler o jornal transmitia um dos programas do nosso telelixo matinal e não a sessão solene política. O que interessa aos donos do estabelecimento e, certamente, à maioria dos clientes é o entretenimento boçal e embrutecedor. A política não é nada com eles. É ou não a materialização do sonho do rasteirado pela cadeira?
Pior: quando me dirigia para o café, cruzei-me com um grupo de pessoas em peregrinação. Muito provavelmente caminhavam para Fátima. Foi para isto que se fez o 25 de Abril? Este povo não merece aqueles que lutaram pela liberdade.
Por tudo isto, acuso Paulo de Carvalho de publicidade enganosa. Não houve qualquer "adeus", foi só uma bem intencionada tentativa que não passou de um "até já".

5/5/06 11:55  
Blogger Unknown said...

Caro anónimo
Achei interessante o seu comentário, com o qual estou básicamente de acordo. Acho no entanto que o Paulo de Carvalho também foi enganado, ou apenas errou na sua análise . Afinal o português não queria liberdade, solidariedade, igualdade ou direitos políticos, como então se julgou. O português queria apenas dinheiro ... e dinheiro para ele, que para os outros isso pouco lhe interessa!
32 anos depois da "revolução" assistimos à morte das ideologias (e não apenas em Portugal, mas por toda a Europa).
Quando se vota, nimguém conhece o programa do partido que vai escolher ... Apenas interessa quais os benefícios económicos a retirar, das promessas feitas, ou seja qual nos traz mais dinheiro (ou promete trazer).
O Euro é a nova Ideologia, a única que resta.

9/5/06 22:58  

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