sábado, dezembro 03, 2005

A Cura (4ªparte)

Já há umas boas horas que Portugal ali estava, à beira daquela estrada com o polegar esticado á caridade alheia e nada. Não havia maneira de apanhar uma boleia e agora a noite começava lentamente a chegar.
Os tempos estavam difíceis, falava-se em crise, a tal amaldiçoada, que o visitava periodicamente, sem apelo nem agravo, não lhe dando nem um bocadinho de folga, para descansar a alma e repousar as costas. Se ao menos tivesse dado um pouco mais de atenção na escola !….
Mas não, o que ele sempre gostara era de jogar à bola no recreio e odiara as Matemáticas, as Ciências e as Físico-Químicas …
Por isso logo cedo abandonara a escola e começara a vergar a mola, primeiro a cavar batatas lá na horta e depois quando os campos foram abandonados, a carregar baldes de cimento, lá na casa dos camones.
Estava ele perdido nos seus pensamentos, quando um carro parou um pouco mais à frente. Correu para ele, ainda meio atordoado com a sua sorte e olhou para o homem, que o observava através do vidro entreaberto :
--- Boa tarde amigo, queria ir para Felgueiras, dá-me uma boleiazita ?
--- Venha, venha, disse o homem, mas primeiro limpe bem os pés, aí nessas ervas.
Assim fez, abriu a porta e sentou-se ao lado de um homem, alto, magro e impecávelmente vestido.
--- Não me leve a mal, explicou o homem ao volante, o carro é novo e resolvi vir fazer a rodagem, até aqui ao Norte. Vou até ao Congresso do meu partido e passo em Felgueiras, sim senhor. Normalmente não dou boleias, mas estava para aqui sózinho, já a dar-me o sono e resolvi levá-lo. Chamo-me Cavaco e vou endireitar este país, exclamou a terminar, o homem ao volante.
Olhou-o de alto a baixo, meio desconfiado, enquanto pensava: --- Olha, mais outro, só me saem é duques !!! No entanto, não deixou transparecer o que lhe ia na alma e agradeceu ao homem a sua generosidade.
Explicou ao homem o que lhe tinha acontecido e porque estava ali, acabando por lhe perguntar se conhecia Fátima Peneiras.
--- A Fátinha, conheço pois, respondeu o homem, é uma santa, só é pena não pertencer ao meu partido, talvez um dia quem sabe.
E lá continuaram viagem, sem grandes conversas mais, porque o homem não tirava os olhos da estrada, firme e hirto, como se tivesse engolido uma vassoura.
Finalmente o carro parou em frente a uma vivenda apalaçada, forrada a azulejos de casa de banho e com dois leões de porcelana a dominarem o portão de entrada.
--- Boa sorte, desejou-lhe o homem, não se esqueça de votar em mim, exclamou, arrancando com a viatura e deixando-o ali especado e hesitante.
Quando ia a tocar a campainha, dois enormes doberman negros, saltaram-lhe ao caminho ladrando furiosamente e ferraram-lhe os dentes implacáveis, cada um no seu braço.
--- Socorro, socorro, gritou Portugal, a plenos pulmões, aí que me matam !
Para sua sorte, as luzes da entrada da casa logo se acenderam e uma mulher de meia idade, impecávelmente vestida, de lá saiu, chamando pelos cães, que prontamente obedeceram.
--- Que é que se passa ? gritou a mulher, você é jornalista ?
--- Não, não, explicou Portugal, ainda agarrado ao braço direito, o mais magoado, pelas dentadas dos cães. De um só folgo, explicou à mulher porque estava ali e ela prendeu finalmente os cães, convidando-o a entrar.
--- Senhor Portugal, muito prazer em conhecer, desculpe lá o Narciso e o Amorim, eles são uns cachorros adoráveis, mas ultimamente tem andado muitos polícias e jornalistas por aí a rondar e os canitos ficam perturbados.
--- Então o Senhor quer um saco azul ? perguntou a mulher, concerteza, tenho muitos, disse, apontando para cima de uma mesa, onde uma pilha de sacos azuis se amontoavam, com a sua fotografia sorridente e onde se lia: Fátima Peneiras à presidência . Leve também umas lapiseiras e uns isqueiros, para compensar as dentadas dos meus cães.

(continua)